Em 1999, a UNESCO solicitou ao
filósofo Edgar Morin a sistematização de
um conjunto de reflexões que servissem como ponto de partida para se repensar a
educação do século XXI.
Os sete saberes indispensáveis enunciados por Morin, objeto
do presente livro:
- as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão;
- os princípios do conhecimento pertinente;
- ensinar a condição humana;
- ensinar a identidade terrena;
- enfrentar as incertezas;
- ensinar a compreensão;
- a ética do gênero humano,
O texto de Edgar Morin tem o
mérito de introduzir uma nova e criativa reflexão no contexto das discussões
que estão sendo feitas sobre a educação para o Século XXI.
Aborda temas fundamentais para a
educação contemporânea, por vezes ignorados ou deixados à margem dos debates
sobre a política educacional.
Sua leitura levará à revisão das
práticas pedagógicas da atualidade, tendo em vista a necessidade de situar a
importância da educação na totalidade dos desafios e incertezas dos tempos
atuais.
Seus capítulos - ou eixos -
expõem a genialidade, clareza e simplicidade do filósofo Morin, num texto
dedicado aos educadores, em particular, mas acessível a todos que se interessam
pelos caminhos a trilhar em busca de um futuro mais humano, solidário e marcado
pela construção do conhecimento.
I - As cegueiras do conhecimento: o
erro e a ilusão
É impressionante que a educação
que visa a transmitir conhecimentos seja cega ao que é conhecimento humano,
seus dispositivos, enfermidades, dificuldades, tendências ao erro e à ilusão e
não se preocupe em fazer conhecer o que é conhecer.
De fato, o conhecimento não
pode ser considerado uma ferramenta "ready made", que pode ser
utilizada sem que sua natureza seja examinada. Da mesma forma, o conhecimento
do conhecimento deve aparecer como necessidade primeira, que serviria de
preparação para enfrentar os riscos permanentes de erro e de ilusão, que não
cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate
vital rumo à lucidez.
É necessário introduzir e
desenvolver na educação estudo das características cerebrais, mentais,
culturais dos conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades, das
disposições tanto psíquicas quanto culturais que o conduzem ao erro ou à
ilusão.
O calcanhar de Aquiles do conhecimento
A educação deve mostrar que não
há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela
ilusão. O conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas
as percepções são, ao mesmo tempo, traduções e reconstruções cerebrais com base
em estímulos ou sinais captados pelos sentidos. Resultam, daí, os inúmeros
erros de percepção que nos vêm de nosso sentido mais confiável, a visão.
Ao erro da percepção acrescenta-se o erro intelectual
O conhecimento, como palavra,
idéia, de teoria, é fruto de uma tradução/construção por meio da linguagem e do
pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro. O conhecimento comporta a
interpretação, o que introduz o risco de erro na subjetividade do conhecedor,
de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento.
Daí os numerosos erros de
concepção e de idéias que sobrevêm a despeito de nossos controles racionais. A
projeção de nossos desejos ou de nossos medos e pás perturbações mentais
trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro.
O desenvolvimento do
conhecimento científico é poderoso meio de detecção de erros e de luta contra
as ilusões. Entretanto, os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver
ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro. Além
disso, o conhecimento científico não pode tratar sozinho dos problemas
epistemológicos, filosóficos e éticos.
A educação deve se
dedicar, por conseguinte, à identificação da origem de erros, ilusões e
cegueiras.
Os erros podem ser mentais - pois
nenhum dispositivo cerebral permite distinguir a alucinação da percepção, o
sonho da vigília, o imaginário do real, o subjetivo do objetivo. A própria
memória é fonte de erros inúmeros. Nossa mente tende, inconscientemente, a
selecionar as lembranças convenientes e eliminar as desagradáveis. Há também
falsas lembranças, fruto de pura ilusão.
Os erros podem ser intelectuais -
pois os sistemas de idéias (teorias, doutrinas, ideologias) não apenas estão
sujeitas ao erro, como protegem os erros possivelmente contidos em seu
contexto.
Os erros da razão: a
racionalidade é a melhor proteção contra o erro e a ilusão. Mas traz em seu
seio uma possibilidade de erro e de ilusão quando se perverte, se transforma em
racionalização. A racionalização, nutrindo-se das mesmas fontes da
racionalidade, constitui grande fonte de erros e ilusões. A racionalidade não é
uma qualidade de que são dotadas algumas pessoas - técnicos e cientistas - e
outras não. A racionalidade também não é monopólio ou uma qualidade da
civilização ocidental. Mesmo sociedades arcaicas podem apresentar elementos de
racionalidade em seu funcionamento. Começamos a nos tornar verdadeiramente
racionais quando reconhecemos a racionalização até em nossa racionalidade e
reconhecemos os próprios mitos, entre os quais o mito de nossa razão
toda-poderosa e do progresso garantido.
É necessário reconhecer, na
educação do futuro, um princípio de incerteza racional: pois a
racionalidade corre risco constante, caso não mantenha vigilante autocrítica
quanto a cair na ilusão racionalizadora. E a verdadeira racionalidade deve ser
não apenas teórica e crítica, mas também autocrítica.
Os erros paradigmáticos - os
modelos explicativos - os paradigmas - também são sujeitos a erros - de
concepção e de interpretação de conceitos. O paradigma cartesiano, por exemplo
- mola mestra do desenvolvimento científico e cultural do Ocidente - se
fundamenta em contrastes binários: sujeito/objeto, alma/corpo,
espírito/matéria, qualidade/quantidade, sentimento/razão, existência/essência,
certo/errado, bonito/feio, etc. - não encontram, no mundo de hoje, a fundamentação
que parecia possuir no início do século XX. O paradigma - como o cartesiano -
mostra alguma coisa e esconde outras - podendo, portanto, elucidar e cegar,
revelar e ocultar. É no seu seio que se esconde o problema -chave do jogo da
verdade e do erro.
O "imprinting" e a normalização
"Imprinting" é o termo
proposto por Konrad Lorenz para dar conta da marca indelével imposta pelas
primeiras experiências do animal recém nascido. O 'imprinting" cultural
marca os humanos desde o nascimento, primeiro com o elo da cultura familiar;
depois da cultura da escola, prosseguindo pela universidade e na vida
profissional.
A normalização - forma de estandartização das consciências -
é um processo social (conformismo) que elimina o poder da pessoa humana de
contestar o "imprinting".
A noologia: possessão
O autor cita Marx, ao dizer
"os produtos do cérebro humano têm o aspecto de seres independentes,
dotados de corpos particulares em comunicação com os humanos e entre si".
Edgar Morin está se referindo às crenças e idéias - muitas vezes reificadas,
corporificadas, a ponto de afirmar que "as crenças e idéias não são somente
produtos da mente, mas também seres mentais que têm vida e poder; e assim,
podem possuir-nos". O homem, na visão do autor, é prisioneiro, por vezes,
de suas crenças e idéias, nos dias de hoje, assim como o foi, anteriormente,
prisioneiro dos mitos e superstições.
O inesperado
O inesperado, no dizer de Morin,
"surpreende-nos"; nós nos acostumamos de maneira segura com nossas
teorias, crenças e idéias, sem deixar lugar para o acolher o "novo".
Entretanto, o 'novo" brota sem parar...
Quando o inesperado se manifesta,
é preciso ser capaz de rever nossas teorias e idéias, em vez de deixar o fato
novo entrar à força num ambiente (ou instância, ou teoria) incapaz de
recebê-lo.
A incerteza do conhecimento
É preciso destacar, em qualquer
educação, as grandes interrogações sobre nossas possibilidades de conhecer. Pôr
em prática as interrogações constitui o oxigênio de qualquer proposta de
conhecimento. E o conhecimento permanece como uma aventura para a qual a
educação deve fornecer o apoio indispensável.
II - Os princípios do conhecimento
pertinente
Existe um problema capital,
sempre ignorado, que é o da necessidade de promover o conhecimento capaz de
aprender problemas globais e fundamentais para neles inserir os conhecimentos
parciais e locais.
A supremacia do conhecimento
fragmentado de acordo com as disciplinas impede freqüentemente de operar o
vínculo entre as partes e a totalidade, e deve ser substituída por um modo de
conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade,
seu conjunto.
É necessário desenvolver a
aptidão natural do espírito humano para situar todas essas informações em um
contexto e um conjunto. É preciso ensinar os métodos que permitam estabelecer
as relações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e o todo em um
mundo complexo.
Da pertinência no conhecimento
A pertinência do mundo enquanto
mundo é uma necessidade, ao mesmo tempo, intelectual e vital.
É o problema universal de
todo cidadão do novo milênio: como ter acesso às informações e organizá-las?
Como perceber e conceber o Contexto, o Global (relação todo/partes) o
Multidimensional, o Complexo?
Para articular e organizar os
conhecimentos e, assim, reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é
necessária a reforma do pensamento. Entretanto, essa reforma não é
programática, mais sim, paradigmática - é questão fundamental da educação, já
que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento.
Esse é o grande
problema a ser enfrentado pela educação do futuro - tornar evidentes:
- o contexto: o conhecimento das informações ou dados
isolados é insuficiente; é preciso situar as informações e dados em seu
contexto para que adquiram sentido;
- o global (relação todo/partes); é mais que o contexto, é o conjunto das
diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional;
assim, uma sociedade é mais que um contexto: é o todo organizador de que
fazemos parte;
- o multidimensional: sociedades ou seres humanos são unidades complexas,
multidimensionais; assim, o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico, psíquico,
afetivo, social, racional; a sociedade comporta dimensões histórica, econômica,
sociológica, religiosas; o conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter
multidimensional e nesse inserir todos os dados a ele pertinentes.
- O complexo: há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis
constitutivos do todo e há um tecido independente, interativo e
inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, partes e todo,
todo e partes, partes em si; assim, complexidade é a união entre unidade e
multiplicidade.
A inteligência geral
O desenvolvimento de aptidões
gerais da mente permite melhor desenvolvimento das competências particulares ou
especializadas.
Quanto mais poderosa é a
inteligência geral, maior é sua faculdade para tratar de problemas especiais. A
compreensão de dados particulares também necessita da ativação da inteligência
geral, que opera e organiza a mobilização dos conhecimentos de conjunto de cada
caso particular.
A educação deve favorecer a
aptidão natural da mente em formular e problemas essenciais e, de forma
correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Este uso total pede o
livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante
a infância e a adolescência, que com freqüência a instrução extingue e que, ao
contrário, se trata de estimular, caso esteja adormecida, despertar.
A educação do futuro, em sua
missão de promover a inteligência geral dos indivíduos, deve ao mesmo tempo utilizar
os conhecimentos existentes, superar as antinomias decorrentes do progresso nos
conhecimentos especializados e identificar a falsa racionalidade.
A antinomia -
para Morin, nos dias atuais, os sistemas de ensino portam antinomias -
contradições - criando e alimentando disjunções entre as ciências e as
humanidades, assim como a separação das ciências em disciplinas
hiperespecializadas, fechadas em si mesmas. Os problemas fundamentais da
humanidade e os problemas globais estão ausentes das ciências disciplinares; o
enfraquecimento da percepção global conduz ao enfraquecimento da
responsabilidade (cada um passa a responder somente por sua tarefa
especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (as pessoas não
sentem mais os vínculos com seus concidadãos).
Os problemas essenciais
Disjunção e especialização
fechada - hiper-especialização impede tanto a percepção do global (que
ela fragmenta em parcelas) quanto do essencial (que ela dissolve).
Redução e disjunção -
o princípio da redução (limitar o conhecimento do todo ao conhecimento de suas
partes) leva naturalmente a restringir o complexo ao simples. Aplica às
complexidades vivas e humanas a lógica mecânica e determinista da máquina
artificial. Como nossa educação sempre nos ensinou a separar, compartimentar,
isolar, e não unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um
quebra-cabeças ininteligível.
A inteligência compartimentada,
parcelada, mecanicista, reducionista, enfim - disjuntiva - rompe o complexo do
mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido,
torna unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba por
ser normalmente cega. Reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da
visão a longo prazo. Assim, quanto mais a crise progride, mais progride a
incapacidade de pensar a crise; quanto mais os problemas se tornam
multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade;
quanto mais os problemas se tornam planetários, mais eles se tornam
impensáveis.
A falsa racionalidade -
ou seja, a racionalização abstrata, triunfa hoje em dia, por toda a parte, na
forma do pensamento tecnocrático - incapaz de compreender o vivo e o humano aos
quais se aplica, acreditando-se ser o único racional. O século XX viveu sob o
domínio da pseudo-racionalidade que presumia ser a única racionalidade, mas
atrofiou a compreensão, a reflexão e a visa em longo prazo. Sua insuficiência
para lidar com os problemas mais graves constituiu um dos mais graves problemas
para a humanidade. Daí, o paradoxo: o século XX produziu avanços gigantescos em
todas as áreas do conhecimento científico, assim como no campo da técnica. Ao
mesmo tempo, produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e
complexos, gerando inúmeros erros e ilusões.
III - Ensinar a condição humana
O ser humano é a um só tempo,
físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico. Esta unidade complexa
na natureza humana é totalmente desintegrada na educação por meio das
disciplinas, tendo-se tornado impossível aprender o que significa ser humano. É
preciso restaurá-la, de modo que cada um, onde quer que se encontre, tome
conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua
identidade comum a todos os outros humanos.
Desse modo, a condição humana
deveria ser o objeto essencial de todo o ensino. É possível, como base nas
disciplinas atuais, reconhecer a unidade e a complexidade humanas, reunindo e
organizando conhecimentos dispersos nas ciências da natureza, nas ciências
humanas, na literatura e na filosofia, pondo em evidência o elo indissolúvel
entre a unidade e a diversidade de tudo que é humano.
Enraizamento/desenvolvimento do ser humano
A educação do futuro deverá ser o
ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Conhecer o humano é,
antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separa-lo dele. Todo o
conhecimento deve contextualizar seu objeto para ser pertinente; "quem somos?"
é inseparável de "onde estamos", "de onde viemos', para
"para onde vamos?". Interrogar nossa condição humana implica
questionar nossa posição no mundo. Para a educação do futuro, é necessário
promover grande remembramento (consolidação) dos conhecimentos oriundos das
ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos
conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a
multidimensionalidade e a complexidade humanas.
O humano do humano
O homem é um ser a um só tempo
plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade
originária. É super e hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as
potencialidades da vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades
egocêntricas e altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e
na embriagues, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos e é nessa
hipervitalidade que o "Homo Sapiens" é também "Homo
Demens".
O homem e o humano se encontram
anelados a três circuitos fundamentais para sua vida enquanto ser e enquanto
pessoa:
- o circuito cérebro/mente/cultura;
- o circuito razão/afeto/pulsão; e
- o circuito indivíduo/sociedade/espécie.
Todo desenvolvimento
verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias
individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à
espécie humana.
"Unitas multiplex": unidade e diversidade humana
Há uma unidade humana; e há uma
diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie;
a diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais e sociais.
Existem outras unidade e diversidades perfilhando as características do ser
humano em "ser humano".
Cabe à educação do futuro cuidar
para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia de diversidade
e que a diversidade não apague a unidade. A educação deverá ilustrar este
princípio de unidade/diversidade em todas as esferas do conhecimento.
IV - Ensinar a identidade terrena
O destino planetário do gênero
humano é outra realidade até agora ignorada pela educação. O conhecimento dos
desenvolvimentos da era planetária, que tendem a crescer no século XXI, e o
reconhecimento da identidade terrena, que se tornará cada vez mais indispensável
a cada um e a todos, devem converter-se em um dos principais objetos da
educação.
Convém ensinar a história da era
planetária, que se inicia com o estabelecimento da comunicação entre todos os
continentes no século XVI, e mostrar como todas as partes do mundo se tornaram
solidárias, sem, contudo, ocultar as opressões e a dominação que devastaram a
humanidade e que ainda não desapareceram. Será preciso indicar o complexo de
crise planetária que marca o século XX, mostrando que todos os seres humanos,
confrontados de agora em diante aos mesmos problemas de vida e de morte,
partilham um destino comum.
A contribuição das contracorrentes
O século XX deixou como herança
contracorrentes regeneradoras. Freqüentemente, na história, contracorrentes
suscitadas em reação ás correntes dominantes podem se desenvolver e mudar o
curso dos acontecimentos. Devemos considerar, como movimentos importantes e
atuantes:
- a contracorrente ecológica que, com o crescimento das
degradações e o surgimento de catástrofes técnicas/industriais, só tende a
aumentar;
- a contracorrente qualitativa que, em reação à invasão do quantitativo e da
uniformização generalizada, se apega à qualidade em todos os campos, a começar
pela qualidade de vida;
- a contracorrente da resistência à vida prosaica puramente utilitária, que se
manifesta pela busca da vida poética, dedicada ao amor, à admiração, à paixão,
à festa;
- a contracorrente de resistência à primazia do consumo padronizado, que se
manifesta de duas maneiras opostas: uma, pela busca da intensidade vivida
(consumismo); a outra, pela busca da frugalidade e temperança (minimalismo);
- a contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania
onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas e
solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro;
- a contracorrente, também tímida, que, em reação ao desencadeamento da
violência, nutre éticas de pacificação das almas e das mentes.
V - Enfrentar as incertezas
As ciências permitiram que
adquiríssemos muitas certezas, mas igualmente revelaram, ao longo do século XX,
inúmeras zonas de incerteza. A educação deveria incluir o ensino das incertezas
que surgiram nas ciências físicas (microfísica, termodinâmica, cosmologia), nas
ciências da evolução biológica e nas ciências históricas.
Será preciso ensinar princípios
de estratégia que permitiriam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a
incerteza, e modificar seu desenvolvimento em virtude das informações
adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de
incertezas em meio a arquipélagos de certeza.
A fórmula do poeta grego
Eurípedes, que data de vinte e cinco séculos, nunca foi tão atual: "O
esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho". O
abandono das concepções deterministas da história humana que acreditavam poder
predizer nosso futuro, o estudo dos grandes acontecimentos e desastres de nosso
século, todos inesperados, o caráter doravante desconhecido da aventura humana
devem-nos incitar a preparar as mentes para esperar o inesperado, para
enfrenta-lo. É necessário que todos os que se ocupam da educação constituam a
vanguarda ante a incerteza de nossos tempos.
VI - Ensinar a compreensão
A compreensão é a um só tempo
meio e fim da comunicação humana. Entretanto, a educação para a compreensão
está ausente no ensino. O planeta necessita, em todos os sentidos, de
compreensão mútua. Considerando a importância da educação para a compreensão,
em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da
compreensão pede a reforma das mentalidades. Esta deve ser a obra para a
educação do futuro.
A compreensão mútua entre os
seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é daqui para a frente vital para
que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão. Daí
decorre a necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas
modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessário porque
enfocaria não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo.
Constituiria, ao mesmo tempo, uma das bases mais seguras da educação para a
paz, à qual estamos ligados por essência e vocação.
As duas compreensões
Há duas formas de compreensão: a
compreensão intelectual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva.
Compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, comprehendere,
abraçar junto (o texto e o seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o
uno). A compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação.
Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos
os meios objetivos de conhecimento. A explicação é, bem entendido, necessária
para a compreensão intelectual ou objetiva.
Mas a compreensão humana vai além
da explicação. A explicação é bastante para a compreensão intelectual ou
objetiva das coisas anônimas ou materiais. A compreensão humana comporta um
conhecimento de sujeito a sujeito. Por conseguinte, se vemos uma criança
chorando, nós a compreendemos, não pelo grau de salinidade de suas lágrimas,
mas por buscar em nós mesmos nossas aflições infantis, identificando-a conosco
e identificando com ela. Compreender inclui, necessariamente, um processo de
empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão
pede abertura, simpatia e generosidade.
Educação para os obstáculos à compreensão
Há múltiplos obstáculos exteriores à compreensão
intelectual:
- o "ruído" que interfere na transmissão da
informação, criando o mal-entendido e ou não-entendido;
- a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra
forma;
- há a ignorância dos ritos e costumes do outro, especialmente os ritos de
cortesia, o que pode levar a se ofender inconscientemente ou desqualificar a si
mesmo perante o outro (diversidade cultural);
- existe a incompreensão dos valores imperativos propagados no seio de outra
cultura - respeito aos idosos, crenças religiosas, obediência incondicional das
crianças, ou, ao contrário, em nossa sociedade, o culto ao indivíduo e o
respeito às liberdades;
- há a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura, o
imperativo da vingança nas sociedades tribais, o imperativo da lei nas
sociedades evoluídas;
- existe a impossibilidade, enquanto visão de mundo, de compreender as idéias e
os argumentos de outra visão de mundo, assim como uma ideologia/filosofia
compreender outra ideologia/filosofia;
- existe, enfim, a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em
relação a outra.
A ética da compreensão
É a arte de viver que nos
demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande
esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de
morte por um fanático compreende porque o fanático quer mata-lo, sabendo que
este jamais o compreenderá. A ética da compreensão pede que compreenda a
incompreensão.
VII - A ética do gênero
humano
"El camino se hace al andar" (Antonio
Machado)
A educação deve conduzir à
"antropo-ética", levando em conta o caráter ternário da condição
humana, que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie. Nesse sentido, a
ética indivíduo/espécie necessita do controle mútuo da sociedade pelo indivíduo
e do indivíduo pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética indivíduo/espécie
convoca, ao século XXI, a cidadania terrestre.
A ética não poderia ser ensinada
por meio de lições de moral. Deve formar-se nas mentes com base na consciência
de que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, parte da
espécie. Carregamos em nós esta tripla realidade. Desse modo, todo
desenvolvimento verdadeiramente humano deve compreender o desenvolvimento
conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e da
consciência de pertencer à espécie humana.
Partindo disso, esboçam-se duas
grandes finalidades ético-políticas do novo milênio: estabelecer uma relação de
controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos pela democracia e conceber a
Humanidade como comunidade planetária. A educação deve contribuir não somente
para a tomada de consciência de nossa "Terra-Pátria", mas também
permitir que esta consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania
terrena.
Não possuímos as chaves que
abririam as portas de um futuro melhor. Não conhecemos o caminho traçado.
Podemos, porém, explicitar nossas finalidades: a busca da hominização na
humanização, pelo acesso à cidadania terrena.
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